
No dia 25 de setembro de 2023 foi realizada a cerimônia de outorga do novo nome do Serviço de Biblioteca do IGc/USP, que passa a se chamar “Biblioteca Setembrino Petri”. Uma homenagem ao mestre que se despediu em 01 de março de 2023 com 100 anos e que no dia 25 completaria 101.
Tivemos uma homenagem muito carregada de emoções com participação de familiares, ex-alunos e muitos admiradores da carreira brilhante do Prof. Setembrino.
Abaixo reproduzimos o texto lido por seu ex-aluno e Professor Senior do IGc/USP, Paulo Cesar Fonseca Giannini:
Biblioteca (Estação?) Setembrino Petri
Hoje, inauguramos a Estação Setembrino Petri. O que me faz voltar um bocado no passado, dia da prova de meu ingresso como aluno na pós-graduação do IGc-USP. Tudo que sabia daquele professor magrinho, cabelos grisalhos, já aposentado, que naquele dia aplicava a prova, é que ele era o autor dos livros e apostilas por onde eu havia me preparado; e lá estava ele, com a disposição e humildade de um novato. Desde esse dia, ele virou meu ídolo maior nas geociências, mesmo sem saber eu direito o porquê.
Hoje, mais de 40 anos depois, eu sei um pouco mais sobre esse professor. Sei que ele orientou muita gente do primeiro escalão da geologia e paleontologia do Brasil. Sei que orientou meu orientador e, portanto, motivo de orgulho, sou seu neto acadêmico. Sei que ele participou em mais de uma centena de bancas e publicou mais de uma centena de artigos, livros, capítulos de livros. Sei que foi docente de cerca de 15 disciplinas diferentes, que abarcam praticamente todo o campo das geociências. E que foi chefe de departamento e diretor deste instituto, mas não só: foi diretor também do Museu Paulista e da ECA, onde, mesmo em breve gestão, tornou-se respeitado e admirado entre os estudantes de arte dramática; a ponto de se tornar, poucos anos depois, nome de personagem do seriado Carga Pesada, da Rede Globo. Portanto, no seu currículo, ele poderia ter colocado também que foi Bino, exímio motorista de caminhão.
Então, eu me pergunto: porque, mesmo antes de saber tudo isso, ele já era meu ídolo? Mistérios da humanidade. Mas penso se não seria, talvez, pelo mesmo motivo pelo qual ele se tenha tornado ídolo de todos nós, independentemente de currículo. Sua educação, gentileza, humildade, cultura nas ciências e nas artes, sobretudo na ópera e na música clássica. E, mais três coisas, inter-relacionadas: 1. a juventude, intacta até o fim de seus mais de 100 anos; 2. a disposição para atualizar-se; e 3. um dos motivos de estarmos aqui hoje, sua capacidade para bater sucessivos recordes olímpicos de frequência nesta biblioteca. Fiel como o passageiro de trem que sobe e desce todo dia na mesma estação; estação que não poderia portanto ter outro nome que não fosse o seu, Setembrino Petri.
O que eu não sabia, mesmo depois de descobrir essas coisas sobre o Prof. Setembrino, e o que jamais poderia supor, é que, um dia, já no crepúsculo do jogo, como diria Fiori Gigliotti, eu frequentaria a sua casa. E ali me sentiria acolhido por ele, por Dona Araci, Rogério, Giselle, Alexis, Fernanda. Eu me sentiria quase membro da família. Quase neto de verdade, embora com idade suficiente para filho. E, agora reconheço, naquele dia da prova, mais de 40 anos atrás, foi meu pai quem eu enxerguei nele.
Professora Ana Góes e eu começamos a nos reunir com o Prof. Setembrino, em sua casa, no começo de 2022, toda quarta-feira, para conversar sobre geologia; segundo D. Araci, o fio tênue que o mantinha teimosamente preso à vida.
O subterfúgio de nossas conversas, que no começo era a Formação Irati, depois se transformou em toda a sucessão carbonífero-permiana da Bacia do Paraná. Da insistência dele com a figura da coluna cronolitoestratigráfica da bacia e da ideia, de início mal compreendida por nós, de “construir um trem” (?), “definir por onde o trem vai passar” (??!) e “escolher as roupas apropriadas, porque vai fazer muito frio no Carbonífero” (???!), nasceu a proposta lúdica de um artigo de divulgação da geologia: um trem caminha pelo relevo irregular sobre a bacia e, em cada cartão postal geológico, penetra, por um túnel, coluna estratigráfica abaixo, para voltar no tempo e chegar ao cenário deposicional original: geleiras, lagos evaporíticos, campos de dunas.
Justo numa quarta-feira (1/3/2023), quando não pude ir ao seu encontro por estar em trabalho de campo no Rio Grande do Sul, Prof. Setembrino pegou esse trem. E se foi.
A quarta anterior foi portanto nossa última com ele. Naquele dia, o Professor estava mais emotivo. Eu levei para ele uma poesia de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, por causa de uma alusão que ele fizera, uma semana antes, a um certo poema de José Saramago sobre o rio Tejo. Era preciso, segundo ele, fazer essa citação a Saramago no artigo. Não encontrei o poema do Saramago sobre o Tejo, mas achei o do Caeiro. Aquele que diz assim:
“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”
Imprimi e levei para ele. Ele leu longamente o poema, compenetrado. E então pediu que eu lhe escrevesse uma dedicatória. Protestei: mas, professor, não fui eu que escrevi a poesia! E ele respondeu: não faz mal, me escreva uma dedicatória mesmo assim.
Então, me veio a ideia. Escrevi uma dedicatória, que sei mais ou menos de cor, que o outro heterônimo de Fernando Pessoa, o Álvaro de Campos, faz ao próprio Alberto Caeiro.
“Mestre, meu mestre querido!
Coração do meu corpo intelectual e inteiro! Vida da origem da minha inspiração!
…
Meu coração [sem ti] não é nada”
Escrevi só esses quatro versos, mas se vocês lerem o poema do Álvaro de Campos inteiro, verão que ele meio que se encaixa, profeticamente, na situação que Ana e eu atravessávamos naquele momento: a de humildes discípulos que rendem homenagem a seu grande mestre, já de partida. Ele leu a dedicatória, também longamente. Aparentemente leu e releu muitas vezes e parece ter-se emocionado. Talvez já ouvindo ao longe o apito do trem que o chamava.
Nosso último momento com o Prof. Setembrino foi assim, literalmente com poesia. O destino, conhecedor antecipado do desfecho, escreveu, por linhas férreas tortas, um roteiro perfeito para que a despedida fosse à altura do personagem. Hoje, quem faz uma homenagem à altura do personagem é esta biblioteca e isso ergue muito alto, para todos verem, o nome tanto do homenageado como de quem homenageia. Tenho certeza que certo ilustre passageiro de trem descerá por aqui, para ver como está bonita a estação que agora tem o nome dele.
“Mestre, meu mestre querido!
Coração do meu corpo intelectual e inteiro! Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada, Alma abstrata e visual até aos ossos,
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo, Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjetiva…Mestre, meu mestre!
Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos, Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos, Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou, Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente, Natural como um dia mostrando tudo,
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade. Meu coração não aprendeu nada.
Meu coração não é nada, Meu coração está perdido.
Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi! Depois tudo é cansaço neste mundo subjetivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas, Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas, Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente. Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento Pela indiferença de toda a vila.
Depois, tenho sido como as ervas arrancadas, Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido. Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém. Depois, mas por que é que ensinaste a clareza da vista,
Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara? Por que é que me chamaste para o alto dos montesSe eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
Por que é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela Como quem está carregado de ouro num deserto,
Ou canta com voz divina entre ruínas?
Por que é que me acordaste para a sensação e a nova alma,
Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
Que poderia ao menos vir a agradar,
E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver. Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!Feliz o homem marçano
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada, Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio, Que dorme sono,
Que come comida,
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação. Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo. Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.”
Mestre, meu mestre querido! – Álvaro de Campos
Abaixo reproduzimos o texto lido pela filha do Professor Setembrino, Giselle Petri, escrito em conjunto com seu irmão Rogério Petri:
Vir à USP, casa do meu pai, em seu aniversário, para uma homenagem e para a nomeação da biblioteca, Setembrino Petri, nos banha de uma tal emoção, honestamente sem palavras… Claro que pensamos de frente para trás e trás para frente como agradecer por esta homenagem, mas verdadeiramente não há como… Acabamos por compreender que mais do que agradecer, o que vivemos hoje é um Estar Junto, um bem querer partilhado e, portanto, uma vivência em conjunto, um de seus maiores legados, a experiência do amor à vida.
Estamos em luto e fazer um luto é repassar a vida mil vezes junto com a perda da pessoa querida. Ele próprio fez o seu luto; um dia nos disse: “Cem anos passaram tão rápido, tenho ainda tanta vida para viver, mas simplesmente não dá mais…”
Eu e meu irmão nascemos e crescemos sob o teto erguido por estes dois fazedores de flores, nossos pais.
Ao longo de nosso crescimento, olhávamos e admirávamos nosso pai de diferentes maneiras!
Quando bem pequenos, ficávamos encantados com a sua força: ele subia e descia a montanha conosco nos ombros, pegava a manga mais alta para a gente comer e, na volta, mergulhava na piscina, indo e vindo sem colocar a cabeça para fora para respirar… Um escândalo!!!!
Crescemos e logo era o seu saber que mais nos impressionava, eu e meu irmão adorávamos inventar perguntas porque ele sempre sabia a resposta. Era divertidíssimo!!!!
Algum tempo se passou e o que mais nos atraía passou a ser a sua agilidade em ver e em extrair o belo em tudo o que fazia: dançava maravilhosamente bem com a nossa mãe e tudo lhe encantava, estando sempre bem disposto e motivado. Dançava frevo, valsa, emocionava-se com a natureza, com a troca de afeto…era apaixonado pela nossa mãe… Trabalhava com afinco e muita dedicação. Tudo lhe fazia feliz!
Fomos crescendo e ele foi nos ensinando o amor. Ele era o amor em estado de paz. Nos ensinou a não ser voraz e a deixar-nos penetrar aos poucos pelo Belo… Seguiu a mim e ao meu irmão, ao longo de nossas vidas, com os olhos mais afetuosos do mundo, estando sempre lá e acompanhando nossas agruras com o carinho de quem já conhece o caminho.
Nos ensinou que o amor é infinito e pode-se amar tudo de corpo e alma. Apaixonado pelo trabalho, pela nossa mãe, pela música, pelos colegas e alunos, pela família mais extensa, pela boa literatura, pelas óperas, pelo sol, plantas, Amparo, por comer bem, pela água fresca, pelo cheiro de terra, pelas frutas, pelos animais, pelas piadas, histórias de infância, de vez em quando lembrava uma musiquinha de carnaval, adorava seus pais…contava sempre muitas histórias…
Os netos nasceram e, com isso, vimos nele um rejuvenescimento, seu coração dilatou-se para caber ainda mais amor!!!! Achei que era o seu máximo….
Os bisnetos vieram e, com eles, sua doçura escorria pelos olhos os quais não se cansavam de embalá-los com seu eterno sorriso…
Pouco antes de morrer, eu lhe disse que aprendi a amar com ele…
Hoje o seu perfume e seu gosto pela vida está aqui, embebendo nossos corações, nos incentivando a alavancar nossa capacidade de dedicação ao patamar mais sublime. Bem vinda, Biblioteca, ao seu novo nome – Setembrino Petri! Que seja o lugar onde cada um que entre entregue suas riquezas internas para serem transformadas em produção intelectual….
Quando eu era criança, enquanto a minha mãe fazia o café da manhã, o meu pai acordava a gente para ir para a escola. Eu tinha sempre duas escolhas ou correr para o escritório para vê-lo trabalhando e admirar aquela cena de dedicação ou esperar ele me acordar, fingindo que estava dormindo, só para percebê-lo olhando para mim com ternura. Na maior parte das vezes, eu preferia me sentir vista e amada. Às vezes, sinto falta de não ter corrido mais vezes ao escritório para vê-lo e amá-lo mais… Hoje, eu olho para a Biblioteca da Geociência e sou capaz de vê-lo em sua postura dedicada ao ler e ao escrever…. o amo e o admiro mais e mais….
Placas em Homenagem:


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