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Origem da Calota de Gelo da Antártida foi “atrasada”pela erosão das reservas costeiras de carbono

Por: Marcelo A. De Lira Mota

Um estudo publicado na revista Nature Communications1 demonstrou que o estabelecimento da Calota de Gelo da Antártida começou 300 mil anos antes do que se pensava, mas seu crescimento foi “atrasado” pela erosão e liberação de carbono dos ambientes costeiros à medida que o nível do mar caía.

A equipe formada por cientistas de seis países (Brasil, Reino Unido, Malásia, Japão, Suíça e Estados Unidos) examinou a composição química e o conteúdo de microfósseis de rochas sedimentares perfuradas na região central do Mississipi, planície costeira do Golfo, nos Estados Unidos. Até hoje, acreditava-se que o surgimento de uma calota de gelo na Antártida teria levado cerca de 400 mil anos, tendo começado há 34,1 milhões de anos, no final da época Eoceno. Esse resfriamento climático pôs fim ao estado climático de “estufa” que persistiu por mais de 250 milhões de anos, inclusive durante o Mesozoico, a “era dos dinossauros”. Nos últimos 34 milhões de anos as calotas de gelo na Antártica têm sido uma característica persistente de nosso mundo climático “moderno”. Compreender as condições climáticas que promoveram o crescimento da calota de gelo antártica e permitiram que elas permanecessem é um dos principais focos de pesquisa da atualidade.

O novo estudo revelou que o crescimento da calota de gelo antártica já havia começado há 34,4 milhões de anos, ou seja, 300 mil anos antes, mas provocou a queda do nível do mar e a erosão de reservatórios costeiros de carbono orgânico. Esse carbono provavelmente foi decomposto e liberou dióxido de carbono (CO2) na atmosfera, impedindo o resfriamento global e agindo como um “freio” no rápido crescimento da camada de gelo. Foi apenas depois que esse carbono orgânico foi erodido e “esgotado” que ocorreu uma rápida transição para o estado de clima frio moderno.

Mas por que uma calota de gelo se formou sobre a Antártida? Duas teorias principais foram propostas. De um lado, há quem defenda que o movimento das placas tectônicas gradualmente “separou” a Antártida dos continentes sul-americano e australiano, deixando-a isolada no Polo Sul, cercada pelo frio Oceano Austral e afastada das águas oceânicas mais quentes para o norte. Por outro lado, um número crescente de cientistas sugere que o soterramento de carbono orgânico em sedimentos, em última instância, proveniente da absorção de CO2 por plantas e algas durante a fotossíntese por muitos milhões de anos já vinha reduzindo os níveis de CO2 atmosférico. Com menos CO2 na atmosfera, a superfície da Terra se tornou mais fria, com a neve nas terras altas da Antártida
menos propensa a derreter completamente de um ano para o outro. Em vez disso, a neve se acumulou no gelo e as camadas de gelo acabaram formando capas de gelo com quilômetros de espessura.

No final do Eoceno, há 34,4 milhões de anos, toda a água agora retida nas camadas de gelo da Antártica estava no oceano, tornando o nível do mar global de 50 e 70 metros mais elevado do que hoje. Tão elevado, na verdade, que grande parte do atual estado americano do Mississippi estava sob um mar raso. E, assim como hoje, estava perto da foz do poderoso rio Mississippi. Neste estudo, os pesquisadores analisaram os sedimentos que se formaram no fundo desse antigo mar. Eles mediram a quantidade de material vegetal e algálico trazido da terra pelo rio Mississippi e compararam isso com a quantidade de restos de organismos que viviam no mar. Essa comparação entre material orgânico derivado do mar e da terra deu uma medida do quão perto o local de estudo estava da desembocadura do rio Mississippi e como essa distância mudou ao longo do tempo. O que eles descobriram foi uma mudança significativa em relação ao material derivado da terra – interpretado como uma queda do nível do mar de aproximadamente 40 metros e, com ela, a aproximação do Delta do Mississippi em direção ao local de estudo – 300 mil anos antes do que se acreditava ter sido o início da principal fase de formação da calota de gelo da Antártida.

Com esta descida do nível do mar e o avanço da costa em direção ao oceano, as águas dos rios começaram a modificar a composição química e biológica das águas marinhas da região, o que se refletiu e conservou nos sedimentos durante milhões de anos. Mas que mecanismo seria capaz de induzir uma queda do nível do mar nessa velocidade e magnitude? A equipe de cientistas concluiu que a queda do nível do mar se deveu ao crescimento significativo das camadas de gelo no continente antártico em uma extensão que não havia sido observada até então. Mas esta não foi a única descoberta.

O estudo foi além e investigou as consequências da queda do nível do mar no clima da Terra e por que esse evento inicial não é reconhecido como uma fase importante no crescimento das camadas de gelo da Antártida. A chave está, mais uma vez, no carbono orgânico – principalmente os restos de plantas e algas, alguns deles enterrados em solos e sedimentos – e o CO2 atmosférico. Assim como o soterramento de longo prazo de carbono orgânico em sedimentos marinhos foi o provável impulsionador da queda dos níveis atmosféricos de dióxido de carbono e do resfriamento global que permitiu que as camadas de gelo da Antártida começassem a crescer, a queda do nível do mar faz outra coisa. À medida que os mares recuam, eles expõem as regiões costeiras e os sedimentos marinhos outrora submersos a intensa erosão pelo vento, chuva e rios.

O carbono orgânico, como o material vegetal, que já esteve preso nesses sedimentos e ambientes – pense nos manguezais de hoje – agora está exposto ao oxigênio no ar e está disponível para que as bactérias o consumam e convertam novamente em CO2 que pode ser liberado para a atmosfera. O aumento dos níveis de CO2 na atmosfera interrompe o resfriamento global e interrompe ou reverte o crescimento da calota de gelo que iniciou todo o processo. Tal mecanismo é conhecido como feedback negativo, pois arrefecem os efeitos do processo inicial, neste caso limitando a taxa de resfriamento climático e retardando a transição para nosso clima frio moderno. Mas havia um limite para esse feedback. Depois que o reservatório de carbono orgânico costeiro foi erodido, ou “exaurido”, e com os nutrientes fluindo para os oceanos, a fotossíntese das algas oceânicas e sua captura de dióxido de carbono reequilibraram o sistema de volta à queda dos níveis atmosféricos de CO2 e ao resfriamento global. Agora, sem um forte feedback negativo deixado pela erosão do carbono orgânico costeiro, o planeta fez a transição para o clima frio, ou estado climático de “frigorífico”, dos últimos 34 milhões de anos, de cujo sistema climático as camadas de gelo da Antártida tem sido uma característica permanente.

Os eventos no final do Eoceno mostram as ligações íntimas entre os reservatórios globais de carbono – incluindo nossos solos, biosfera e sistemas costeiros – dióxido de carbono atmosférico, clima global, camadas de gelo polar e níveis do mar. Faríamos bem se prestássemos atenção em tudo isso.

FONTE: De Lira Mota, Marcelo Augusto; Dunkley Jones, Tom; Sulaiman, Nursufiah; Edgar, Kirsty M.; Yamaguchi, Tatsuhiko; Leng, Melanie J.; Adloff, Markus; Greene, Sarah E.; Norris, Richard D.; Warren, Bridget; Duffy, Grace; Farrant, Jennifer; Murayama, Masafumi; Hall, Jonathan; Bendle, James A. (2023). Multi-proxy evidence for sea level fall at the onset of the Eocene-Oligocene transition. Nature Communications. DOI: 10.1038/s41467-023-39806-6.

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Marcelo A. De Lira Mota
Instituto de Geociências
Universidade de São Paulo
marcelomota@usp.br

Sobre o Autor Principal: Marcelo A. De Lira Mota é Geólogo (UFPE/Brasil, 2010), Mestre em Geociências (UFPE/Brasil, 2015) e Doutor em Ciências da Terra (Universidade de Birmingham/Reino Unido, 2019). Foi pesquisador no Instituto Tecnológico de Paleoceanografia e Mudanças Climáticas (Unisinos/Brasil, 2019-2023) e atualmente trabalha como Gestor Acadêmico de Projetos de Pesquisa no Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (Brasil). Nos últimos dois anos, Marcelo foi co-autor de outros seis artigos revisados por pares sobre paleoclimatologia e paleoceanografia em revistas de alto impacto (Geology, Earth-Science Reviews, Scientific Reports, Global and Planetary Change e Frontiers in Earth Science). Ele também tem experiência no ensino e divulgação científica de tópicos como climas antigos, calotas de gelo da Antártida e acidificação dos oceanos. Em 2019, Marcelo representou o Brasil na Expedição 379 (História do Gelo da Antártida Ocidental) do Programa Internacional de Descoberta Oceânica como micropaleontólogo a bordo. Também colabora no projeto Paleoflora Antártica/Florantar, financiado pelo Programa Antártico Brasileiro desde 2019.

Sobre a revista: A Nature Communications é uma revista de acesso aberto que publica pesquisas de
alta qualidade de todas as áreas das ciências naturais. Os artigos publicados pela revista representam avanços importantes e significativos para os especialistas de cada área. A Nature Communications tem um fator de impacto de 2 anos de 17,69 (2021).