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Contaminação nos aquíferos

Falta de manutenção das redes e vazamento de esgotos comprometem as reservas naturais, responsáveis pela regularização de outros corpos hídricos

Por Lilian Caramel

31/08/2023 06h02  Atualizado 31/08/2023

Varnier, do IPA: 100 anos para eliminar o nitrato — Foto: Divulgação
Varnier, do IPA: 100 anos para eliminar o nitrato — Foto: Divulgação

Assim como no mundo, o uso das águas subterrâneas está crescendo no país. As supercaixas d’água que regularizam outros corpos hídricos, com os rios, são cruciais para o alcance das metas ambientais da Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU). Cientistas alertam para a falta de dados sobre a situação dessas reservas naturais, porque o Brasil possui duas entre as maiores do planeta: os sistemas aquíferos Grande Amazônia (Saga) e Guarani.

“O que mais me preocupa é o amplo desconhecimento tanto das ameaças quanto das oportunidades. Essa é uma agenda que não mobiliza a sociedade”, diz Ricardo Hirata, professor do Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas (Cepas), da Universidade de São Paulo (USP). Conforme estudo recente da instituição, a contaminação dos aquíferos sob áreas urbanas por vazamentos das redes de esgoto, aliada à falta de saneamento básico, é um problema.

O Sistema Aquífero Bauru (SAB), fonte de abastecimento de várias cidades do centro-oeste paulista, apresenta o maior número de registros de contaminação. “O aumento nas concentrações de nitrato tem sido sistemático, afetando cidades como Marília, Bauru, Presidente Prudente, São José do Rio Preto e Urânia, há décadas. A contaminação também pode estar acontecendo em outras áreas no Estado”, afirma Claudia Varnier, coordenadora do Grupo de Trabalho Nitrato, do Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CTAS/CRH) e pesquisadora do Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA/Semil).

Segundo ela, a falta de manutenção das redes e as fugas de esgoto são as principais fontes de contaminação, inclusive de poços de abastecimento público. Quanto às áreas rurais, faltam dados. “O nitrato preocupa, porque é muito móvel e as plumas contaminantes podem atingir áreas extensas. Estudos do Cepas mostram que são necessários mais de 100 anos para eliminá-lo da natureza, considerando que as fontes cessem.”

Almada, da COGERH: 13 municípios  do Cariri (CE) são abastecidos  por aquíferos — Foto: Divulgação
Almada, da COGERH: 13 municípios do Cariri (CE) são abastecidos por aquíferos — Foto: Divulgação

Contaminante de maior ocorrência em aquíferos do mundo inteiro, o nitrato em concentrações superiores ao padrão de potabilidade pode causar metemoglobinemia (síndrome do bebê azul), alguns tipos de câncer e doenças no sistema reprodutivo, se ingerido, conforme a Organização Mundial de Saúde (OMS). Para mitigar a poluição, Varnier recomenda, entre outras medidas, o cadastro do poço junto ao órgão outorgante, obrigatório por lei. Porém, mais de 88% dos poços tubulares são clandestinos país afora, e os estudiosos insistem que a criação de programas de comunicação social é fundamental para incentivar a população a regularizá-los e monitorá-los.

Em Natal (RN), onde 78% da população não tem acesso à coleta do esgoto, a contaminação acontece desde a década de 1980. Por volta de 1,5 mil poços tubulares abastecem os moradores e a contaminação chega a atingir 70% deles, na porção norte da cidade, operados pela Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte (Caern). Os níveis elevados historicamente tornaram a água não potável. Em nota, a empresa informa que dilui as águas subterrâneas em águas limpas, provenientes de fontes superficiais, para reduzir o teor do contaminante. Além disso, anunciou a entrada em operação do esgotamento sanitário na zona norte para 2024 e admitiu que o descarte inadequado dos dejetos humanos continua atingindo o lençol freático.

A superexploração desses recursos é outra ameaça. No Ceará, um projeto de pesquisa está investigando características de dois aquíferos estratégicos para a segurança hídrica no Estado: o Jandaíra e o Açu. O monitoramento inovador com isótopos ambientais, por meio de datação de carbono 14, irá ajudar a formular políticas públicas conservacionistas. A idade e o comportamento de recarga das reservas nas regiões do Cariri e Apodi estão sendo analisados por meio de 60 poços abertos pelos cientistas. Uma das preocupações é com o abastecimento do Cariri, região dependente da água subterrânea.

“Precisamos pesquisar, porque a demanda só aumenta. As festas religiosas atraem muita gente”, diz a hidrogeóloga Zulene Almada, gerente de projetos da Companhia de Gestão de Recursos Hídricos (COGERH). Com 13 municípios do Cariri abastecidos exclusivamente por aquíferos, o projeto detectou rebaixamento de um metro, em algumas localidades, em função do superbombeamento por poços tubulares. “No Apodi, a demanda principal é para irrigação de frutíferas. A intenção é avançar com os estudos para conhecer mais porque, na verdade, sabemos pouco.”

Em Ribeirão Preto (SP), a abertura de novos poços encontra-se restrita por uma deliberação do Conselho Estadual de Recursos Hídricos desde 2006. A cidade é abastecida por 120 poços que extraem água do Guarani 24 horas por dia. Um rebaixamento de cerca de 60 metros, no formato de um cone invertido, continua afetando o aquífero na área central da cidade. “Antigamente, era uma farra. Qualquer um abria um poço com facilidade. Conforme alguns estudos começaram a revelar o abuso, debatemos no comitê de bacia que decidiu propor zonas de restrição. Não virou lei, mas a norma pegou e chegou a embasar sentenças judiciais. Ficou muito mais difícil perfurar”, diz Carlos Alencastre, engenheiro civil e ex-diretor do Departamento de Águas e Energia Elétrica (Daee), que estuda o Guarani há décadas.

Para ele, reduzir desperdícios e diversificar o abastecimento com fontes superficiais minimizaria o risco de uma crise. Atualmente, as perdas na distribuição em Ribeirão Preto chegam a 47%, segundo o Instituto Trata Brasil. “Em alguns países, como o Japão, 5% de perda é algo grave. Aqui nos confortamos com 20%, mas isso é rasgar dinheiro. Extraímos um recurso valioso, de 40 mil anos de idade, para jogá-lo fora. Precisamos corrigir a pressão excessiva em certos pontos da rede e fazer campanhas de uso consciente da água.”

Os sistemas Guarani e Bauru serão foco de financiamento do governo paulista, que provisionou R$ 20 milhões por ano para monitoramento das águas no Estado. São Paulo implantou, em 2018, um sistema automatizado de regularização de poços e viu os pedidos por outorga triplicarem. Conforme a Superintendência do Daee, o abastecimento doméstico (condomínios residenciais) é o maior demandante hoje. O Estado é o que mais depende das águas subterrâneas para uso urbano no país.