O dia em que as ondas do mar pararam
“Assim os antigos marinheiros portugueses,
Que temeram, seguindo contudo, o mar grande do Fim,
Viram, afinal, não monstros nem grandes abismos,
Mas praias maravilhosas e estrelas por ver ainda.”
Álvaro de Campos
Professor Kenitiro Suguio será para mim, para sempre, o sinônimo brasileiro de geologia costeira e do Quaternário. Neste momento, vejo o vaivém das ondas, em todas as praias deste país, parar por um minuto. Oportunidade para lembrar sua trajetória. O breve relato de sua vida acadêmica que faço a seguir terá, como se fosse um registro estratigráfico, mais lacunas que outra coisa. Como bom estratígrafo que era, ele há de me compreender, e me perdoar.
Professor Kenitiro graduou-se no curso de geologia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP, em 1962, e ingressou de imediato no seu primeiro emprego como geólogo, na Petrobrás. Em 1965, iniciou impressionante carreira acadêmica na USP. Num período de apenas cinco anos, entre 1968 e 1973, defendeu Tese de Doutoramento orientada pelo Prof. Dr. Setembrino Petri, sobre a geologia da Bacia de Taubaté, realizou pós-doutorado na Universidade de Tóquio e apresentou Tese de Livre-Docência acerca da então chamada Formação Bauru. Manteve o ritmo de trabalho nos anos seguintes: tesoureiro da Sociedade Brasileira de Geologia (SBG) por quatro gestões consecutivas, de 1973 a 1981; fundador, em 1984, da Associação Brasileira de Estudos do Quaternário, a Abequa, a qual presidiu com desenvoltura por três gestões; Professor Titular do Instituto de Geociências (IGc) da USP em 1986.
Sua produção bibliográfica está possivelmente entre as mais extensas da geologia sedimentar brasileira: 171 artigos publicados em periódicos mais 95 artigos completos e 272 resumos em anais de eventos. Ainda que os números impressionem até mesmo quem não acredita em avaliações quantitativas, há pelo menos três aspectos ainda mais singulares nessa produção: em primeiro lugar, o ecletismo dos temas dentro da geologia sedimentar; em segundo lugar, o zelo e o respeito pela língua portuguesa, tão surpreendente para um descendente de imigrantes japoneses, quanto natural em um país onde as autoridades da língua atendem por nomes como Cegalla, Sacconi e Pasquale; por último, e mais curioso, suas figuras artesanais a nanquim, feitas de próprio punho, que ao longo dos anos desafiariam coreldraws, autocads e congêneres.
Seus trabalhos atravessaram as diferentes eras geológicas, os mais variados sistemas deposicionais e as inúmeras gamas de relações entre ser humano, meio físico e conhecimento geológico. A divulgação científica aplicada aos interesses da sociedade e a publicação de livros-texto eram preocupações constantes. A evidência mais marcante disso está assinalada com cinco estrelinhas amarelas em seu “Currículo Lattes”; as publicações que ele ali deixou destacadas como as mais importantes de sua produção não incluem nenhum de seus vários artigos em revistas especializadas internacionais de alto impacto, mas sim livros-textos que têm feito parte do dia-a-dia de gerações de estudantes de geologia e oceanografia de todo o Brasil: o “Introdução à Sedimentologia”, de 1973; o “Rochas Sedimentares”, de 1980; os dicionários de geologia marinha e de geologia sedimentar, de 1992 e 1998, respectivamente; e o “Geologia do Quaternário e Mudanças Ambientais”, de 1999. Outros viriam depois. No total, o Professor Kenitiro deixou 12 livros e 18 capítulos de livro.
Tanto prestígio e dedicação ao trabalho jamais fizeram-no perder a sensibilidade pelo relacionamento com colegas, alunos e orientados. Na sala de aula e nos corredores do IGc-USP, como nos congressos científicos, o Professor Kenitiro era sempre a mesma pessoa acessível e generosa. Não espanta que ele tenha acumulado 40 orientações de pós-graduação concluídas. Seus orientados guardam por ele o respeito e o afeto que se têm por um pai. Muitos destes filhos acadêmicos atuam hoje em universidades e instituições de pesquisa de diferentes partes do Brasil, do Piauí a Santa Catarina, a espalhar e multiplicar o efeito “família Kenitiro” como fator de formação do geocientista brasileiro.
A erudição em geociências não lhe minou o interesse pelas outras faces da natureza. No campo, seu conhecimento e entusiasmo contagiante não se limitavam a rochas, estruturas sedimentares e unidades estratigráficas. Nomes de aves, árvores e bichos fluíam com a mesma naturalidade que termos geológicos, revelando que sua auto-ploclamada “especialização em generalidades” extrapolava as fronteiras de sua vasta sapiência geocientífica.
A capacidade de trabalho e produção do Prof. Kenitiro, equilibradamente repartida entre ensino, pesquisa e extensão, fez dele um docente-pesquisador modelo, ou “pesquisador paradigma”, título que ele recebeu da USP em 1992. Mas o que mais impressiona é como ele manteve esta capacidade por tantos anos, sem perder o entusiasmo pelas coisas mais simples e imateriais da profissão, da natureza e da convivência; aqui lembro-me do riso fácil e de seus divertidos e quase folclóricos relatos de memórias da vida de professor e de geólogo, sucessivamente encadeados uns aos outros.
Eram, e continuarão sendo, duas pessoas numa só: a referência bibliográfica respeitada, Doutor Suguio; e a referência humana e profissional obrigatória para alunos, orientados e colegas, Professor Kenitiro; que é como nós sempre o chamamos e como ele preferia ser chamado. Mas chamem como quiser: não é a toda hora que dois títulos, o de Doutor e o de Professor, cabem tão bem, com iniciais maiúsculas, à mesma pessoa; não é a qualquer hora que ondas e areias de praia param para prestar homenagem àquele que se tornou o próprio símbolo dos sedimentos costeiros.
Paulo César Fonseca Giannini
São Paulo, 26 de maio de 2021
Ele foi referência em estudos sobre Sedimentologia e Estratigrafia.
Publicou muitos trabalhos científicos, formou discípulos, realizou estudos sobre variações relativas do nível do mar no Quaternário do Brasil entre inúmeros outros méritos registrados em sua trajetória como o Prêmio Jabuti e uma Comenda da Ordem Nacional de Mérito Científico.
No IOUSP, ele teve papel fundamental na formação de nossos pesquisadores e professores Valdenir Furtado e Moysés Tessler, pilares da Oceanografia Geológica . O IOUSP junta-se ao IGc para o lamento e tristeza pela partida do Prof. Suguio.
Eu, pessoalmente, tive oportunidade de conhecê-lo quando estava na direção do Museu de Ciências da USP e absorvi um pouco de seu enorme conhecimento. Ele concedeu a entrevista com tanta satisfação e entusiasmo ao saber que se destinava à divulgação da ciência no âmbito de uma exposição itinerante sobre a água- Água:uma viagem no mundo do conhecimento. Me senti privilegiada.
Como representante do IOUSP, deixo aqui nosso pesar pela partida deste nosso dedicado professor.
Atenciosamente,
Profa Elisabete S. Braga G. Saraiva
Reproduzo, a seguir, o que escrevi ao Prof. Suguio em resposta ao convite recebido para participar do evento “Exposição Rastros no Chão: retrospectiva científica e acadêmica”, organizado pelo Instituto de Geociências da USP, através do Serviço de Biblioteca e Documentação, para homenageá-lo:
“Prezado Prof. Suguio, receba os meus cumprimentos, com a minha contínua admiração por sua carreira científica e acadêmica, e também por sua trajetória pessoal. Trago com orgulho o fato de ter recebido a sua orientação em meus estudos de Doutorado e, desde então, contar com a sua amizade.”
A inauguração desta exposição ocorreu na tarde/noite do dia 28/maio/2018 e tive a possibilidade de comparecer para dar o meu abraço pessoalmente. Se a minha memória não estiver me traindo, foi a última vez em que estive com ele… Era sempre uma alegria muito grande revê-lo!
Tenho profundo respeito e carinho pelo Prof. Suguio e não consigo lembrar momentos que não sejam agradáveis com ele, mesmo antes de ser seu orientando, ou depois, durante o Doutorado, e em todos os anos seguintes, quando convivíamos nos eventos da ABEQUA ou estávamos juntos em uma ou outra banca. Recebi sempre dele incentivo e apoio.
O Prof. Suguio será sempre uma referência para mim!
Recebam o meu abraço e os meus sentimentos a todos os professores, técnicos e alunos do IGc/USP.
Claudio Limeira Mello, Geologia/UFRJ
Homenagem da turma 1987-1991 ao Professor Kenitiro
Prof. Kenitiro Suguio,
Sempre foi uma pessoa doce, discreta, porém com um sorriso espontâneo em todos os momentos e, sempre marcante com a autoridade que o profundo conhecimento científico lhe dava. Esteve sempre disponível para conversar, discutir, compartilhar e ensinar, levando o seu conhecimento geológico e humano aos quatro cantos do Brasil e do Mundo. Nosso respeito por ele sempre foi uma reverência, por acima de tudo, ser humano e respeitoso conosco, alunos e alunas.
Obrigado PROFESSOR!
Campos de Jordão- SP – Mapeamento Sedimentar – 1990